Há três meses atrás Detroit, cidade norte-americana, entrou em falência. Este processo ocorrido na outrora conhecida como "Motor City" revela um movimento que pode ter consequências graves, mas que, ao que parece, não incomoda nem um pouco o Governo norte-americano.
Na metade do século passado, Detroit viveu seu momento de glória como uma das cidades mais importantes dos EUA, graças as indústrias automobilísticas que lá se instalaram, fazendo a mesma progredir e prosperar. Contudo, os efeitos da desindustrialização - processo de dispersão de indústrias de um determinado local, causado por motivos como o alto preço dos impostos e da mão de obra, alto custo dos terrenos, pressão sindical, saturação do espaço (poluição) e a "guerra fiscal" - começaram a esvaziar a cidade que começou a perder postos de trabalho, decair na arrecadação de impostos, a comprometer seu equilíbrio fiscal e a caminhar para um caminho que não poderia ser outro a não ser o da falência...
O processo de bancarrota de Detroit está tão avançado que a austeridade vem atacando ferozmente a cidade e medidas que mais parecem receituário do neoliberalismo vêm sendo cada vez mais aplicadas: Demissão de funcionários públicos, suspensão de serviços públicos ou funcionamento em meio período... Tudo em nome do superávit primário da cidade...
Como se não bastasse isso, o Governo Federal parece não se importar muito com o que acontece não só com Detroit, mas também com outras cidades nos Estados Unidos, vai ver porque Obama passa por um problema parecido e tenta lutar no congresso pela liberação do aumento do teto da dívida desesperadamente, evitando assim calotes não só domésticos como internacionais...
Improbidade administrativa ao longo dos anos ou não, fato que é não é cortando o quadro de funcionários e serviços públicos que uma cidade conseguirá os recursos que necessita para se tornar sustentável outra vez. Investindo em infra-estrutura e revitalização, além de incentivos que atraiam as indústrias de volta à cidade é que se desenha um bom caminho para que a mesma volte a respirar; o problema é que sem dinheiro não há como realizar este processo, também não adianta o mesmo vir na forma de corte, pois estaríamos asfixiando mais ainda o que estamos tentando salvar. Talvez a solução possa vir da ajuda dos Governos estaduais e federal, mas quando os mesmos se mostram insensíveis a causa, não há muito o que fazer...
Vítima da desindustrialização, Detroit foi à falência em julho. Meses antes, o condado de Jefferson teve o mesmo destino. As bancarrotas municipais se seguem, revelando as deficiências das políticas urbanas federais. Envolvida em uma nova queda de braço, Washington reluta em ajudar as comunidades locais
Depois da fusão parcial de uma usina nuclear em Michigan, em 1966, o grande poeta do soul e do jazz norte-americano Gil Scott-Heron dedicou um poema à cidade vizinha ameaçada pela catástrofe: “Quase perdemos Detroit”. Parecia inconcebível a ideia de que a quinta metrópole nos Estados Unidos, a capital industrial do país, a cidade venerável do automóvel, pudesse um dia ser varrida do mapa. Detroit sobreviveu à crise nuclear, mas pode não sobreviver à crise de austeridade, ou ser deixada num estado irreconhecível: em 18 de julho de 2013, incapaz de pagar seus US$ 18,5 bilhões de dívida, a municipalidade foi à falência. Colocada assim sob a proteção da lei de falências dos Estados Unidos, ela poderia reescalonar suas dívidas, ao preço de múltiplos sacrifícios. É a primeira falência de uma cidade desse tamanho − um sinal preocupante em um país onde o mercado de títulos municipais totaliza mais de US$ 3,7 trilhões (1,5 vez o PIB brasileiro em 2012).
Longe de ser resultado de má gestão das finanças locais, como alguns se comprazem em afirmar, a bancarrota de Detroit é o ápice de um longo processo de desindustrialização, que viu a antiga Motor City se transformar em Ghost City (cidade-fantasma), despovoada de seus moradores e de suas atividades. De 1995 a 2000, o município perdeu 52% de seus empregos na indústria. Na metade do século passado, os estabelecimentos industriais da cidade geravam trabalho para um em cada dez habitantes; hoje, eles empregam um em cada cinquenta. Das dez maiores fábricas de automóveis que outrora prosperavam em Detroit, apenas uma ainda está em atividade,1 apesar de certa recuperação na produção.
Desde 1960, mais de 1 milhão de pessoas – ou seja, mais da metade da população – deixou Detroit, uma fuga acelerada nos últimos anos por um desemprego duas a três vezes superior à média nacional. Isso, inevitavelmente, diminuiu as receitas da cidade. A crise econômica de 2008 mergulhou definitivamente as finanças municipais no vermelho e desencadeou uma corrida para a austeridade. Desde então, as coletas de lixo são mais irregulares, as delegacias ficam fechadas na parte da tarde, a iluminação pública e os serviços de ônibus diminuíram etc. Em alguns quartéis, os bombeiros foram obrigados a comprar eles próprios seu papel higiênico. Comovida com a situação, uma empresa generosamente doou 70.752 rolos aos bombeiros de Detroit...2
O governador republicano de Michigan, Rick Snyder, poderia ter decidido investir recursos públicos para reativar postos de trabalho perdidos ou criar novos. Ele preferiu atropelar o conceito de democracia, suprimindo poderes dos eleitos (democratas) locais em benefício de um “administrador financeiro de emergência” escolhido por ele. Nomeado em março de 2013, Kevyn Orr, advogado especializado em falências de empresas, dispõe de um poder considerável: pode demitir funcionários municipais, privatizar os bens comunais ou ainda modificar acordos coletivos negociados com os sindicatos. Tudo sem qualquer cargo eletivo, mas supostamente no interesse do município para “endireitar as contas”. Tapar os buracos do orçamento de uma cidade proibindo seus eleitores de se pronunciar sobre as decisões econômicas que afetam sua vida e seu futuro não é só uma afronta à democracia: é uma maneira conveniente de fazer as vítimas pagar para evitar que a política mude.
De fato, com base nessa tomada de controle, o governador conseguiu precipitar Detroit num processo de falência que ameaça cortar pensões e as despesas de saúde, já que metade da dívida da cidade provém dessas duas rubricas orçamentárias. Ora, os rendimentos pagos aos funcionários municipais, ativos ou aposentados, constituem muitas vezes o combustível final que poderia alimentar a economia local. Secar essa fonte – o último fio de segurança para as populações mais vulneráveis – só vai piorar a situação.
O desastre orçamentário de Detroit constitui um momento sério e decisivo, com consequências não só para as áreas urbanas, mas para todo o país. Há cinquenta anos, os Estados Unidos levavam a sério a política urbana. Prefeitos de grandes cidades desempenhavam um papel de liderança no cenário político nacional; os dois principais partidos políticos refletiam sobre as “estratégias urbanas” e consideravam vital investir nas infraestruturas locais e no desenvolvimento econômico. Mas, ao longo dos anos, seu compromisso com essa área se desgastou a ponto de hoje os democratas virarem as costas para as cidades que votaram mais maciçamente neles, enquanto os republicanos reavivam a antiga hostilidade conservadora contra as zonas urbanas.
Detroit não constitui de forma alguma uma exceção em um país onde mais de 80% dos habitantes vivem em cidades. Só em Michigan, outros cinco municípios (Benton Harbor, Ecorce, Flint, Pontiac, Allen Park) e vários distritos escolares (Highland Park, Muskegon Park...) foram colocados sob a supervisão de um “gestor de emergência” pelo governador Snyder. Estes últimos abrigam apenas 10% da população do estado, mas concentram metade de sua população afro-americana. Tanto que o representante democrata de Michigan no Congresso, John Conyers, está preocupado com a “componente racial em ação, na aplicação da lei”3 na gestão de emergências.
Esses municípios sob tutela poderiam seguir a trajetória das cerca de vinte cidades e condados que, nos últimos dois anos, tiveram de declarar insolvência, sem despertar a menor reação do governo federal: San Bernardino, Stockton e Vallejo na Califórnia, Jefferson no Alabama, Harrisburg na Pensilvânia, Central Falls em Rhode Island... Em cada caso, as mesmas causas produziram os mesmos efeitos: a saída de atividades gerou um empobrecimento da população, o que causou uma diminuição na receita, a qual justificou as medidas de austeridade, que só fizeram reforçar os problemas orçamentários, a ponto de precipitar a cidade na falência. Com 300 mil habitantes e US$ 700 milhões de dívida, Stockton prenuncia o que pode acontecer em Detroit. Em processo de falência desde 28 de junho de 2012, a cidade experimentou uma dieta que permitiu a demissão de 25% dos policiais, 30% dos bombeiros e cerca de 40% dos funcionários administrativos municipais. Mas isso não foi o suficiente: um ano após a bancarrota, uma redução das pensões de aposentadoria dos funcionários municipais foi anunciada, a fim de economizar US$ 2,5 bilhões durante os próximos trinta anos.
A gula dos estraga-prazeres
De acordo com os republicanos, as cidades em falência deveriam se ater a si mesmas. Assim, durante anos, o governador Snyder tem se empenhado em desacreditar as autoridades eleitas, os sindicatos do serviço público e os aposentados, considerados muito gulosos. Segundo ele, seria suficiente eliminar esses estraga-prazeres para recolocar tudo em ordem. O senador republicano da Carolina do Sul, Lindsey Graham, desfia a mesma ladainha quando diz que “Detroit, sem dúvida alguma, sofre graves problemas, mas em parte foi ela própria quem os criou”.4 A única crítica que poderia ser feita a Detroit, como, aliás, a qualquer outra cidade norte-americana, é que seus eleitores votaram por vezes em incompetentes. De resto, a municipalidade e os sindicatos se distinguiram principalmente por seu senso de sacrifício. Se o remédio que consiste em cortar à espada os gastos públicos produzisse os efeitos a ele atribuídos, a Motor City ou Stockton seriam hoje cidades prósperas. De fato, como observa o historiador Thomas Sugrue, “entre 1990 e 2013, para fazer face às despesas, Detroit quase dividiu pela metade o número de funcionários municipais”.5
“Por muito tempo, os legisladores e os reguladores fecharam os olhos para os municípios que estão lutando com déficits orçamentários, um sistema de aposentadorias não financiado e infraestruturas em ruínas”,6 denuncia um congressista de Michigan, o democrata Dan Kildee. Ele convoca o Banco Central norte-americano (FED) a colaborar com o Congresso para corrigir a “falha sistêmica das cidades norte-americanas”. Tendo o FED recebido o mandato para promover a estabilidade econômica, isto é, em princípio lutar contra o desemprego e manter as taxas de juro de longo prazo no nível mais baixo possível, Kildee, ele próprio um ex-tesoureiro municipal, acredita que é seu dever examinar formas de “apoiar especificamente as cidades em processo de falência”.
“Nosso sistema de finanças municipais está sem fôlego”, acrescenta. “Os estados e o governo federal devem reconsiderar a maneira como apoiam as cidades e as zonas urbanas.” Além de uma política comercial mais equitativa e de investimentos nas infraestruturas, ele reclama uma subvenção global para o desenvolvimento urbano. De acordo com o eleito de Michigan, “é hora de começar a pensar sobre a sustentabilidade [das cidades] e de colocar em prática mecanismos de apoio às zonas urbanas e periurbanas, que formam o pulmão de nossa economia”.
A ideia de fazer o FED intervir é ainda mais delicada se considerarmos que o Congresso se mostra relutante em conceder às cidades o balão de oxigênio que ele gentilmente ofereceu aos bancos de Wall Street, os quais dispõem da autoridade necessária para obrigar o governo federal a agir. Kildee também reconhece que os problemas com que se defrontam as cidades norte-americanas “vão muito além da questão da má gestão local”.
A crise urbana repousa em um emaranhado complexo, cuja responsabilidade cabe, em primeira instância, a Washington e aos estados antes de recair sobre as cidades em si. Infelizmente, num momento em que o Congresso prepara novos cortes orçamentários, em virtude daquilo que o presidente Barack Obama chama de “grande barganha”, a voz de um Dan Kildee ressoa no deserto.
Para Detroit, como para suas homólogas em falência, o desafio mais urgente consiste em encontrar os fundos que lhes faltam para honrar os próximos vencimentos de sua dívida. Nesse sentido, Detroit se encontra na mesma situação que Wall Street em 2008, quando as grandes instituições financeiras norte-americanas entraram em colapso. Com a diferença de que o setor financeiro tinha à época provocado uma resposta imediata do Congresso, sob a forma de um plano de resgate de US$ 800 bilhões e de promessas de ajudas adicionais para os bancos considerados “grandes demais para falir”. O destino das cidades norte-americanas claramente interessa menos a Washington.
1 Ler Laurent Carroué, “Le coeur de l’automobile américaine a cessé de battre” [O coração do automóvel norte-americano parou], Le Monde Diplomatique, fev. 2009.
2 “Detroit firefighters get 70,000-roll toilet paper gift” [Bombeiros de Detroit ganham 70 mil rolos de papel higiênico de presente], USA Today, 6 dez. 2012.
3 Krissah Thompson, “Possibility of emergency manager in Detroit prompts civil rights concerns” [Possibilidade de gerente de emergência em Detroit desperta preocupações com os direitos civis], The Washington Post, 5 jan. 2012.
4 James Arkin, “Lindsey Graham’s plan to prevent city bailouts” [O plano de Lindsey Graham para evitar resgates de cidades], Politico, 24 jul. 2013.
5 Thomas J. Sugrue, “The rise and fall of Detroit’s middle class” [Ascensão e queda da classe média de Detroit], The New Yorker, 22 jul. 2013.
6 “Cities are too big to fail” [Cidades são grandes demais para falir], The Nation, 22 jul. 2013.
Com informações do Le Monde Diplomatique.
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