Pois é, mesmo que o título acima ganhe uma conotação até positiva ela esconde um grande problema que ocorre silenciosamente em nosso país. Ante a crise de 2008 o governo tomou diversas medidas para combater a tal "marolinha". Com isso diversos setores da indústria foram beneficiados, inclusive com as reduções no IPI. Assim, os lucros das montadoras, por exemplo, nunca foram tão grandes quanto nesse período, a ponto de mandar seus lucros para suas matrizes para cobrir os rombos causados pela crise.
Com os incentivos realizados pelo governo, o nosso país se tornou um grande atrativo para os investidores externos. Nessa época da crise, o que foi investido aqui gerou lucros enormes. Contudo, o preço a se pagar por tanto lucro sequer foi cobrado pelo governo: que seriam maiores investimentos em nosso país para melhorarmos quantitativamente e qualitativamente e nos tornarmos mais competitivos.
O resultado disso são déficits inéditos na balança comercial no que tange o setor automotivo onde vemos mais uma vez o lema do neo-liberalismo em destaque: o gasto é do Estado, o lucro é do privado. Infelizmente.
Os números divulgados pelo Banco Central na última semana com relação aos fluxos recordes de investimento direto estrangeiro (IDE) em 2010 no montante de 48,4 bilhões de dólares (soma da entrada líquida de recursos externos na modalidade de participação em capital mais empréstimos intercompanhias) ensejaram comemorações no governo e no meio empresarial. Ao superar os volumes pré-crise internacional em 2008, de 45,1 bilhões de dólares, o Brasil consolida-se como importante receptor de investimento externo, atrás apenas da China entre as economias emergentes, superando, inclusive, algumas tradicionais economias avançadas e importantes receptoras de investimento. Para entender melhor a importância dos fluxos de IDE, eles foram suficientes para financiar o expressivo rombo nas contas correntes de 47,5 bilhões de dólares em 2010.
Mas os números também trouxeram preocupações entre os especialistas. A própria deterioração da conta corrente foi um dos principais destaques negativos, com a redução do superávit comercial e, principalmente, com a elevação das remessas de lucros e dividendos realizadas pelas empresas estrangeiras para suas matrizes. As remessas já haviam crescido de forma expressiva em 2008, no auge da crise internacional, quando atingiram o patamar de 33 bilhões de dólares, refletindo a estratégia das grandes corporações globais de transferir fluxos de caixas de suas filiais esparramadas mundo afora para suas matrizes com grandes dificuldades financeiras. Em 2009, embora as remessas tenham se reduzido para 25 bilhões de dólares, superaram a própria entrada de IDE. Em 2010, com a explicitação dos diferenciais de crescimento entre países desenvolvidos e emergentes, as remessas saltaram para 30 bilhões de dólares.
Diferentemente dos investimentos que se distribuíram de forma relativamente equilibrada entre as atividades extrativas, industriais e de serviços, as remessas estiveram fortemente concentradas em alguns setores industriais com forte presença de multinacionais, com especial destaque para o setor automotivo (montadoras e autopeças). As remessas das filiais automotivas para os debilitados caixas de suas matrizes atingiram a expressiva soma de 4 bilhões de dólares em 2010, o que representou um valor quase dez vezes maior que os investimentos externos realizados por essas filiais no mesmo período (450 milhões de dólares). Repete-se assim o movimento já observado durante e após a crise. Se considerarmos o período 2008-2010 as remessas de lucros e dividendos de empresas automotivas totalizaram 12,4 bilhões de dólares ante investimentos externos de apenas 3,6 bilhões de dólares, o que significa um saldo líquido negativo de 8,8 bilhões de dólares, em que pese o excelente desempenho das vendas e da produção na economia brasileira.
É importante observar que o setor automotivo foi um dos mais contemplados com reduções tributárias no âmbito das políticas públicas anticíclicas de enfrentamento da crise no Brasil (e também em outras economias, como EUA, Alemanha, Canadá, China, Coreia do Sul, Espanha, França, Índia, Itália, Japão e Reino Unido). Para se ter uma dimensão das desonerações fiscais envolvidas, a arrecadação federal com o IPI automotivo reduziu de 6 bilhões de reais, em 2008, para pouco mais de 2 bilhões de reais, em 2009. Nesse ano foram comercializados 3,1 milhões de veículos ante 2,8 milhões, em 2008. Em 2010, a arrecadação recuperou-se com o final das reduções tarifárias e o forte aumento das vendas (3,5 milhões de unidades vendidas), atingindo 5,7 bilhões de reais.
Ao mesmo tempo que as remessas ao exterior se elevaram, as empresas do setor automotivo tomaram financiamentos de 8,7 bilhões de dólares (aproximadamente, 16,3 bilhões de reais) ao BNDES no período 2008-2010. Por outro lado, a média anual de investimentos produtivos foi da ordem de 2 bilhões de dólares para as montadoras e de 1,3 bilhão de dólares para as autopeças nos últimos anos. Isso significa que quase a totalidade dos recursos necessários para financiar seus investimentos saiu dos cofres públicos, enquanto parcela expressiva dos lucros foi transferida para as matrizes.
Além do ajuste financeiro, as montadoras utilizaram os acordos comerciais, o câmbio valorizado e as vantagens de uma estrutura corporativa fortemente internacionalizada para otimizar seus fluxos produtivos e comerciais, reduzindo a capacidade ociosa em mercados relativamente mais estagnados com vendas para mercados mais dinâmicos. É o caso do Brasil. Beneficiando-se da forte demanda doméstica, as montadoras ampliaram sistematicamente as importações de veículos, totalizando 1,5 milhão de unidades no período 2008-2010, com 660 mil apenas em 2010. Com isso a balança comercial de automóveis, que historicamente sempre foi superavitária, se tornou negativa já em 2009 e deve superar 3 bilhões de dólares em 2010. Se somada ao déficit no segmento de autopeças, os valores ultrapassam 5 bilhões de dólares, com importações superiores a 21 bilhões de dólares.
A utilização de instrumentos tributários, fiscais e financeiros para incentivar o investimento não só é justificável como tem sido decisiva para viabilizar a atratividade de alguns projetos estratégicos. Cabe destacar que a elevação da taxa de investimento da economia brasileira constitui-se em precondição para um crescimento sustentável de longo prazo e o melhor antídoto anti-inflacionário. O que nos parece injustificável é a concessão de benefícios e de recursos públicos para empresas privadas sem a exigência de contrapartidas. Nesse caso, a contrapartida deveria ser a ampliação dos investimentos no desenvolvimento de novos produtos e processos, na ampliação da capacidade produtiva (em torno de 4,3 milhões de unidades) e em atividades inovativas.
Deve se destacar que esses investimentos são ainda mais prementes quando se considera a intensidade das mudanças que vêm ocorrendo no setor depois da crise internacional. No plano tecnológico, a busca por maior eficiência energética e por novas formas de propulsão alternativa tem avançado de forma rápida. No plano geo-gráfico, tem ocorrido um deslocamento rápido do dinamismo da demanda para países em desenvolvimento, com impactos profundos também sobre a distribuição da produção. Finalmente, essas mudanças no padrão geográfico da demanda e da oferta vêm sendo acompanhadas pela entrada de novos players, com destaque para produtores chineses (a produção e demanda de veículos na China aproxima-se de 15 milhões de unidades, em 2010, ante apenas 2 milhões, em 2000).
Nesse contexto, sem mais e melhores investimentos, o País e o próprio setor automotivo correm sério risco de perder competitividade e de reduzir quantitativa e qualitativamente sua inserção na rede corporativa global.
Extraído de cartacapital.com.br
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