Enquanto no Rio de Janeiro aqueles que pagam as suas contas de luz à Light terão aumento de quase 3% em suas contas de luz. A Agência Nacional de Energia Elétrica vem a público relatar que que todos os brasileiros pagam, desde 2003, cerca de 7 bilhões de reais além do devido em suas contas de energia... É realmente esse o país que queremos ?
Após reconhecer que os brasileiros pagaram, desde 2003, cerca de 7 bilhões de reais além do devido em suas contas de energia, o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Nelson Hubner, em tese responsável por zelar pelos interesses públicos no setor elétrico, decidiu ir além. Mesmo diante da pressão crescente de parlamentares e promotores, afirmou na quinta-feira 5 que a agência não falhara nesse episódio, apesar de reconhecer que tomara conhecimento da “distorção” dois anos atrás.
“A Aneel vai apresentar os números sobre as distorções geradas por essa metodologia. O nosso entendimento é que não houve ilegalidade, não há o que ser ressarcido. Mas vamos discutir isso com a sociedade, com o Ministério Público, vamos ver se há possibilidade de fazer esse ressarcimento”, afirmou Hubner.
Medindo as palavras para evitar atritos com as distribuidoras, acrescentou que não tomara nenhuma decisão a respeito da bilionária cobrança indevida porque faltava “ambiente”. “Antes não havia ambiente político para essa negociação (com as 64 distribuidoras que faturaram a mais). Agora temos espaço para chamar as empresas a negociar”, afirmou, acrescentando que a agência decidira abrir uma consulta pública em busca da fórmula correta. Hubner sustenta que a agência apenas “cumpriu os contratos”, que previam o reajuste irregular, desde 1997, quando foram elaborados.
O episódio ilustra bem a quantas andam as agências reguladoras em funcionamento no Brasil desde que a privatização transferiu à iniciativa privada serviços públicos como a distribuição de água, energia elétrica e telecomunicações. E reforça o sentimento dos especialistas e advogados de que há algo de muito errado nessa história. Além da pressão dos especialistas e do MP, um projeto em tramitação na Câmara promete mexer nesse vespeiro.
Expectativas à parte, é o caso de frisar que o argumento de Hubner é daqueles capazes de irritar profundamente o jurista Celso Antonio Bandeira de Mello, um dos mais renomados entendidos em direito administrativo do País, professor da PUC de São Paulo. Capitaneado pelo jurista, um grupo de profissionais do direito esforça-se para lançar luz nesse debate, ainda marcado pela resistência ideológica que enxerga qualquer espécie de crítica à atuação das agências como indício “estatizante”.
As dez agências federais em funcionamento, afirmam esses especialistas, possuiriam vícios de origem, decorrentes do modelo copiado dos EUA e da Inglaterra, e distorções promovidas a despeito da legislação vigente. “Segundo consta, as agências foram uma exigência dos investidores estrangeiros. E por que razão?”, pergunta Bandeira de Mello, para, após uma pausa, responder: “Só se pode imaginar que foi a confiança de que seria estruturado um modelo conveniente para eles. A própria expressão agência é importada”.
O argumento apresentado por Hubner é contrário à tradição jurídica nacional. Segundo eles, cumprir o contrato, no caso de um negócio público, significa manter o equilíbrio econômico-financeiro do momento da concessão, sempre com vista ao bem da sociedade como um todo. “A ordem do regime democrático sempre colocou o interesse público acima do privado. No caso dos contratos de concessão, significam certas prerrogativas excepcionais que cabem ao poder público, para que seja capaz de rever uma relação contratual e atenda o interesse público. Poderá inclusive declarar nulos esses contratos sem consultar a outra parte, desde que mediante uma compensação, se for esse o caso”, afirma Pedro Estevam Serrano, próximo de Bandeira de Mello e sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano e Renault.
Nos últimos anos, as agências teriam se caracterizado por uma série de arbitrariedades ao extrapolar as funções previstas em lei, segundo a qual deveriam zelar pelo bom andamento dos diversos segmentos em que atuam.
Entre os pontos que merecem a atenção dos parlamentares e dos promotores, podem-se listar os seguintes. A edição de normas e regulamentos pelos quais as agências criam suas próprias políticas. Aí fica evidente uma crítica recorrente à atuação das agências: elas teriam sido “capturadas” pelos interesses privados, de um lado, e pela pressão do Executivo, do outro, como no caso da fusão da Brasil Telecom e da Oi, proibida até então pela Lei Geral de Telecomunicações. O negócio foi feito com base em uma resolução da agência, não em uma lei específica.
Em operação há mais de oito meses, a BrOi ainda não passou pelo crivo do Cade, responsável por zelar pela concorrência. Isso porque até aqui a Anatel não concluiu o parecer que servirá de base à avaliação do Cade.
“As agências funcionam como verdadeiros ‘miniestados’ surgidos para gerir os interesses comerciais e econômicos dos investidores. E têm poderes que vão muito além da intenção original”, diz Serrano.
Como Bandeira de Mello, Serrano considera que um problema sério é o fato de o mandato dos dirigentes das agências não coincidir com o do Presidente da República ou dos governadores. “O principal defeito das agências é essa falta de sincronia, que faz com que um governo não consiga mudar a orientação das agências assim que assume o poder, como desejariam os eleitores”, avalia. Bandeira de Mello considera esse o principal defeito das agências.
Também erraram ao permitir que os acionistas das concessionárias transferissem as concessões a empresas de propósito específico, como fez Daniel Dantas com a Brasil Telecom, “uma completa ilegalidade”, avalia Serrano. Ou ainda, conforme especialistas, ao constituir outras empresas e contratá-las como fornecedoras, de modo a inflar os custos e assim conseguir reajustes tarifários mais polpudos. Nesse caso, a subsidiária fornecedora escapa do controle das agências, já que não são uma concessão e tornam praticamente impossível a aferição dos balanços.
Outro ponto crítico diz respeito ao escasso tempo e falta de informações disponíveis para as audiências públicas em que, em tese, a sociedade é chamada a colaborar. Muitas vezes as agências decidem pontos delicados, que terão efeitos na qualidade e custo dos serviços, sem que haja um debate verdadeiro. A Anatel, nesse caso, é destaque – seu conselho chegou a incluir uma cláusula que representaria um lucro milionário às operadoras após o prazo de consulta, o que é ilegal. Teve de voltar atrás por força de decisão judicial.
A indicação para as instâncias superiores das agências de pessoas sem nenhum conhecimento técnico no setor que vão regular, nem mesmo a legislação regulatória em sentido amplo, também é alvo das críticas.
Não faltam exemplos, e não apenas na esfera federal, de graves indícios de irregularidade. Com base em premissas e critérios irreais, a Arsesp, agência reguladora do estado de São Paulo, permitiu, em prejuízo dos consumidores industriais, uma transferência de 1 bilhão de reais entre 2003 e 2008 para o caixa da Comgás, a antiga estatal de distribuição vendida à inglesa British Gas, em 1999, pelo então governador Mário Covas.
Diante das reclamações de empresários ligados à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e à Associação Brasileira da Indústria do Vidro, grande consumidora de energia, a Secretaria de Energia encomendou a uma consultoria externa um parecer sobre a validade da metodologia utilizada na fórmula de reajuste das tarifas.
Especialista na defesa dos direitos dos consumidores e ex-integrante do conselho consultivo da Anatel, no qual ingressou como representante dos consumidores, a advogada Flávia Lefèvre considera que o maior problema não está na lei criadora das agências ou na lei das concessões. “Acho um avanço a existência das agências, não me parece que o problema seja o modelo”, afirma. “Mas uma coisa é a lei e outra, muito diferente, é o desrespeito à lei, que é o que estamos vendo. As agências têm extrapolado as suas atribuições, invadindo a competência do Executivo. Em vez de implementar políticas, como prevê a lei, são muitas vezes executoras. Isso só ocorre porque conta com a concordância do Executivo. As agências estão capturadas pelos interesses das empresas, mas também pelo governo.”
No caso da Anatel, a crítica inclui o fato de a empresa não ter até hoje criado o chamado modelo de custos, sem o qual não há como aferir se as informações relativas a custos e investimentos prestadas pelas operadoras são verdadeiras ou não.
Presidente da Associação Brasileira das Agências Reguladoras (Abar), Wanderlino de Carvalho acolhe algumas das críticas feitas às agências. Como a de que a Aneel poderia rever a fórmula de cálculo dos contratos, caso entendesse ser de interesse público. “Esse problema das tarifas elétricas pode ter ocorrido por um tipo de erro, talvez sem má-fé.” Diz ainda que muitas vezes falta expertise ao corpo técnico das agências. Reforça o tom crítico, no entanto, no caso da Anatel, uma das duas agências federais que não são filiadas à associação (a outra é a ANA, de águas). “No caso da telefonia, existe a possibilidade de a agência ter sido mesmo capturada pelas empresas.” Além de defender a não coincidência dos mandatos dos dirigentes e do presidente, considera ser preciso investir mais na qualificação profissional dos funcionários das agências.
Em Brasília, o projeto de reformulação das agências, que tramita a passos lentos na Câmara, já sofreu inúmeras modificações, desde sua proposição pela Casa Civil em 2004. A maioria delas tratou de garantir a autonomia das agências, sem mexer nos pontos mais polêmicos.
A proposta tem como ponto forte criar regras mais favoráveis aos consumidores nas audiências públicas. Ou ainda ao criar a figura do ouvidor, diz o deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), que teria a função de produzir relatórios à Presidência da República e ministérios, a partir de críticas e sugestões que cheguem às agências. “É evidente que as agências têm sido capturadas pelos interesses privados. É preciso redefinir o papel que desempenham, de modo que deixem de planejar e executar, como fazem hoje. O governo deveria enfrentar certa resistência ideológica que ainda existe em uma parcela da sociedade, especialmente nos grandes meios de comunicação, e mexer nisso. O problema é que uma parcela da base aliada ajudou a construir o que está aí. Também é evidente que algumas agências, como a Aneel, foram extremamente prejudiciais à sociedade e merecem uma auditoria”, diz Ferro.
Com base em uma consultoria da FGV, a Casa Civil planeja criar uma espécie de “agência das agências”, órgão ligado à pasta que teria a função de avaliar previamente as normas e resoluções antes de serem colocadas em prática. Deve ficar para 2010.
Outro assunto igualmente explosivo que afeta o futuro de estatais e empresas de capital privado do setor de energia elétrica, também herança das privatizações, tem impacto sobre o bolso dos mais de 190 milhões de brasileiros.
Entre 2015 e 2017, quando expira a primeira grande leva de concessões de serviços de utilidade pública que pelas regras atuais não poderia ser renovada, vencem contratos de concessão que abrangem 20% da geração de energia do País, 73 mil quilômetros de linhas de transmissão e 37 distribuidoras que atendem milhões de cidadãos. E uma discussão jurídica e política que envolve mais de 100 bilhões de reais em ativos e contratos de compra e venda de energia.
“O futuro do setor elétrico está em jogo”, resume o presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Paulo Godoy. “As empresas precisam vender energia, fazer investimentos, financiar projetos, projetar o amanhã, e para isso precisam de regras. A incerteza prejudica e muito porque 2015 está aí”, diz o executivo. Coordenador do Grupo de Estudo do Setor Elétrico da UFRJ, Nivalde de Castro diz que a questão abre uma oportunidade histórica ao governo, com a possibilidade de reduzir o preço das tarifas, erros e má-fé à parte.
A discussão remete à Lei 9.074, de 1995. As empresas vendidas – cerca de 20% do setor de geração e de 70% da área de distribuição – foram compradas em leilões por companhias privadas, que pagaram pelo direito de explorar o serviço público. Para essas empresas, as concessões foram “zeradas” e dadas por 30 anos, com possibilidade de renovação – regra que vale também para novas usinas de geração.
No caso de ativos que não foram privatizados, algumas concessões foram prorrogadas por vinte anos, encerrando-se a partir de 2015. Para alguns advogados, não poderia haver nova prorrogação. O artigo 175 da Constituição Federal determina que cabe ao poder público prestar um serviço público diretamente ou por meio de concessão ou permissão, “sempre através de licitação”. Há também contratos ainda mais antigos elaborados com base no Código de Águas, de 1934, outros com base no novo marco regulatório do setor elétrico de 2004, um cipoal jurídico intrincado.
A questão é complexa, já que os ativos são um bem da União delegado a terceiros. “Pode-se prorrogar indefinidamente ou deve-se licitar? O que se faz com um bem já amortizado? E como se chegar a uma solução jurídica para o caso?”, questiona o diretor do Instituto Nacional de Eficiência Energética (Inee), Pietro Erber. Em geração, por exemplo, muitas usinas têm mais de 40 anos e estão amortizadas há anos. “Cabe então estruturar formas de fazer com que a decisão a ser tomada não renda dividendos apenas para os acionistas, mas para todos os consumidores”, diz Erber.
Um grupo de trabalho foi criado pelo governo federal para discutir o assunto, que veio à tona no início de 2008, quando o governador paulista, José Serra, tentou colocar à venda a Cesp. O leilão naufragou pela desistência dos interessados, que alegaram risco elevado, pois as concessões das hidrelétricas de Jupiá e Ilha Solteira, que respondem por dois terços da capacidade da estatal paulista, iriam expirar em 2015 e não havia nenhuma decisão do governo federal sobre a renovação.
Executivos e analistas do setor elétrico temem que a indefinição se arraste por anos. “A decisão tem de sair em 2010, mesmo com a dificuldade eleitoral. Vários contratos vencem em 2014 e 2015. Para a infraestrutura, 2015 é amanhã”, diz Godoy.
Há duas principais opções sobre a mesa: a não prorrogação dos ativos, o que os faria voltar à União, que os licitaria; ou a sua prorrogação. A diretriz é de que, qualquer que seja a decisão, o consumidor possa se beneficiar dela, pois a maior parte dos ativos teve seu custo amortizado. Mas uma solução não é tão simples. “A questão envolve contratos de várias décadas e feitos em vários marcos regulatórios. Há dúvidas se há necessidade de mudança na Constituição ou apenas alterações em leis”, diz Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão estatal de planejamento.
O grupo de trabalho elaborou um relatório com os prós e contras sobre o tema, mas a palavra final terá de ser dada pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).
Cálculos de analistas estimam que a queda nos preços da energia possa chegar a 10% com a redução de encargos e menor preço na geração de energia, mas há estudos que apontam um impacto menos significativo. “Licitar seria privatizar. No setor de energia, é fundamental ter o planejamento do setor nas mãos do Estado”, diz Castro, professor da UFRJ e autor de diversos estudos sobre o tema. “Sem prorrogação, a Chesf, que integra a Eletrobrás e é a maior empresa de geração do Nordeste, poderia desaparecer de uma hora para a outra.”
Se a maioria das vozes no setor elétrico é favorável à renovação, alternativa que provocaria menores rupturas, há quem defenda as licitações. “A licitação na área de geração seria uma forma de aumentar a competição e de se chegar a um preço menor”, diz o presidente da Acende Brasil, Cláudio Sales. Opinião que teria apoio de empresas privadas, interessadas em participar de leilões de usinas de geração com receita garantida.
Problemas semelhantes, ainda que em escala reduzida, também são encontrados nas concessionárias de ferrovias e de telefonia.
Extraído de cartacapital.com.br