O conjunto de países que ganhou projeção internacional nos anos 2000 (BRIC - Brasil, Rússia, Índia e China) se reuniu este ano no Brasil para juntos traçarem estratégias e ambições conjuntas para o futuro.
Dessa reunião surgiu um relatório, reportagem abaixo, que explica o sucesso dos BRICs (pautado tanto no mercado interno quanto nos investimentos diretos externos) bem como suas perspectivas para o futuro (uma maior atuação no cenário político mundial e até mesmo a mudança no padrão monetário internacional - o que eu particularmente duvido muito que aconteça pois não depende só do grupo mas sim da comunidade internacional).
Enfim, a matéria é um ótimo panorama sobre os BRICs e vale muito a pena conferir.
Há trinta anos não se imaginava a mudança geopolítica e econômica que a ascendência dos países que compõe o grupo denominado BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) provocaria no cenário internacional. O Brasil vivenciava fortemente a estagnação econômica que levou os anos de 1980 a serem conhecidos como "a década perdida", a Rússia ainda vivia sob um regime comunista, a Índia engatinhava em sua busca pelo comércio externo, e a China iniciava reformas para abrir seu imenso mercado consumidor às empresas capitalistas.
Três décadas depois estes países lideram a retomada do crescimento econômico global após uma severa crise, entre 2008 e 2009, ter abalado as estruturas financeiras dos países mais desenvolvidos. Para consolidar este novo posicionamento e importância no cenário mundial, os países do BRIC (acrônimo criado pelo economista chefe do banco Goldman Sachs, Jim O´Neill, em 2001) se articularam buscando formas de aumentar sua participação nos rumos econômicos do planeta, bem como uma maior inserção na política internacional, seja por meio de uma participação mais relevante em organismos multilaterais, seja reforçando entre si posicionamentos e parcerias comerciais e tecnológicas.
Neste sentido, realizaram em 2009, na Rússia, a primeira cúpula dos BRIC, encontro cujo ponto central foi a busca de uma maior representatividade dos países emergentes no processo decisório no campo das relações internacionais. Um ano depois, o Brasil sediou a II Reunião de Cúpula dos países que formam o BRIC, ocorrida no Palácio do Itamaraty em Brasília, no dia 15 de abril, na qual o presidente Luís Inácio Lula da Silva recebeu seus colegas Hu Jintao (China) e Dmitri Medvedev (Rússia) e o primeiro-ministro Manmohan Singh, da Índia. Em paralelo, o Ipea promoveu, entre os dias 14 e 15 de abril, um encontro entre representantes de alguns dos principais centros de estudo econômicos da Rússia, China e Índia, para discutir o papel dos BRIC na transformação global pós-crise.
REPRESENTAVIDADE GLOBAL A busca por uma maior cooperação no cenário político internacional reflete o crescimento que estes países obtiveram nos últimos anos, especialmente no âmbito econômico. De acordo com dados do Banco Mundial, em 1990 os países do BRIC representavam 8% Produto Interno Bruto (PIB) mundial, e em 2006 passaram a representar 12% da economia global. O comércio internacional é uma das dimensões na qual a importância dos BRIC aumentou visivelmente. No mesmo intervalo de tempo, o peso destes países no comércio mundial passou de 3,9% para 10,6%, excetuando-se deste total a Rússia, cujos dados de 1990 não estão disponíveis.
Apesar do expressivo crescimento da corrente global entre 1996 e 2008, que praticamente dobrou nesses 12 anos, Brasil, Rússia, Índia e China expandiram suas exportações a taxas ainda mais elevadas e reforçaram a sua importância no mercado mundial.
Segundo destacou Renato Baumann, representante da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe) no Brasil, o desempenho recente destas economias e seus indicadores macroeconômicos auxiliaram na mudança de perspectiva em relação às suas potencialidades de crescimento. Sobretudo porque, em comum, estas economias apresentam grandes mercados internos que "aumentam as possibilidades para que possam obter 'exportações viabilizadas pelo crescimento', em vez de um 'crescimento liderado pelas exportações'", o que lhes confere um espaço maior de participação nas relações internacionais, argumentou o pesquisador no texto O comércio entre os países do BRIC, divulgado durante o evento em Brasília. Alguns estudos chegam a apontar que os nos próximos 50 anos o BRIC poderá superar o G-6 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália) como principal força propulsora da economia global.
INVESTIMENTOS DIRETOS EXTERNOS Parte do crescimento destes países se explica pelos investimentos diretos externos (IDE) feitos em suas economias, e por suas economias. A Unctad, órgão das Nações Unidas para o comércio e desenvolvimento, estima que em 2009 o fluxo total de IDE tenha alcançado US$ 1,4 trilhão, após pico de US$ 1,97 trilhão em 2007, e US$ 1,69 trilhão em 2008 (ver gráfico 2). O órgão da ONU projeta que a partir de 2011 os fluxos de IDE se recuperem consistentemente, com boa parte deste fluxo sendo gerada e absorvida pelos BRIC.
Radhika Kapoor, do Conselho Indiano para Pesquisa em Relações Econômicas Internacionais (ICRIER, na sigla em inglês), destacou, durante o evento do Ipea em Brasília, que apesar do declínio em volume global de IDE nos últimos anos, a quantidade destes recursos que foi absorvida pelos países em desenvolvimento apresentou crescimento de 17% em 2009, em relação ao ano anterior. "A participação das economias em desenvolvimento no fluxo global de IDE subiu de 31% em 2007 para 43% em 2008, mudando o cenário de investimentos", afirmou a pesquisadora indiana.
Dentre os países do BRIC, o Brasil é o mais internacionalizado, com o maior estoque de IDE em relação ao seu PIB (18%), seguido pela Rússia (13%), Índia (10%) e China (9%). Entretanto, considerando os investimentos feitos em outros países, o Brasil fica em segundo lugar. O estoque de investimento no exterior corresponde a 10% do PIB brasileiro, enquanto na Rússia este porcentual alcança 12% (ver tabela 1).
Apesar de apresentarem perspectiva de recepção e aplicação crescentes destes investimentos, a forma como estes recursos são utilizados varia de acordo com as especificidades econômicas de cada país. Luciana Acioly, coordenadora de Estudos de Relações Econômicas Internacionais do Ipea, citou o exemplo da Rússia, que aproveitando-se do ciclo de valorização das commodities minerais na década de 2000, acumulou um elevado nível de divisas (mais de US$ 439 bilhões ao final de 2009), tornando-se assim a maior fonte de IDE dentre os BRIC.
O IDE russo concentra-se nos setores de petróleo e gás, mineração, siderurgia e telefonia móvel, detalhou Luciana, acrescentando que cerca de 30% do estoque de IDE russos estão localizados na Comunidade dos Estados Independentes (CEI), que reúne países que faziam parte da URSS, com a União Europeia concentrando mais de 40%. "A Rússia não possui políticas específicas de apoio à internacionalização de suas empresas, tais como incentivos fiscais, financiamentos e seguro contra risco político, mas apesar desta inexistência de políticas específicas, é clara a influência do Estado sob o processo de internacionalização das empresas", ressalta.
Já Svetlana Glinkina, do Instituto de Economia da Academia de Ciências da Rússia salientou que metade dos investimentos totais da Rússia em 2009 foi IDE. A pesquisadora reconhece que o papel do Estado russo no setor de óleo e gás é muito grande, e que "mudar esta situação hoje é muito difícil, porque as companhias estão lucrando muito com o alto preço do petróleo". Svetlana avaliou que a melhor maneira de a Rússia a superar sua dependência da exportação de commodities minerais é aproveitar as grandes reservas em moeda estrangeira e "aplicá-las para organizar créditos específicos para nossas empresas, melhorando sua eficiência e o próprio sistema russo".
ÍNDIA E CHINA Em termos de IDE, Índia e China estão em posições distintas dentro do BRIC. A China é o país que mais recebe investimentos externos direto dentro do bloco (US$ 108 bilhões em 2008, sendo o terceiro país que mais recebeu IDE no mundo), enquanto no mesmo ano a Índia recebeu US$ 42 bilhões, a Rússia recepcionou US$ 70 bilhões, e o Brasil US$ 45 bilhões.
A Índia, apesar do menor volume de recursos recebidos, apresentou avanço considerável nos seus investimentos externos. Os investimentos feitos por empresas indianas no exterior cresceram de menos de 1% dos investimentos originados em países em desenvolvimento no ano 2000 para 6% em 2008, movimento marcado pelas empresas indianas adquirindo e se fundindo com empresas estrangeiras. Muitas vezes, adquirindo ativos no exterior em volume superior ao seu próprio patrimônio líquido, com ênfase na compra de empresas em países desenvolvidos. As maiores negociações foram: em 2007, a compra da britânica Corus Steel pela indiana Tata Steel no montante de US$ 12 bilhões, a compra das operações africanas da empresa de telefonia móvel do Kuwait, Zain Telecom, pela indiana Bharti Airtel por US$ 10,7 bilhões, a compra da norte-americana Novelis pela Hindalco, na área de alumínio, também em 2007, por US$ 6 bilhões, e a emblemática compra da britânica Jaguar-Land Rover pela Tata Motors, em 2008, pelo montante de US$ 2,5 bilhões.
Estas fusões e aquisições, no entanto, estão altamente concentradas no setor automotivo e em Tecnologia da Informação (TI). Segundo Radhika, isso se dá porque tradicionalmente os países desenvolveram primeiro seu setor primário, em seguida o secundário e por último o terciário. "Na Índia desenvolvemos primeiro o setor primário, mas pulamos o estágio de expandir o setor secundário, e avançamos muito o setor terciário. Agora temos que elaborar políticas para auxiliar o desenvolvimento do setor manufatureiro, até por uma questão de geração de empregos para a mão de obra menos qualificada", avalia a pesquisadora do ICRIER.
Para Radhika, o IDE deve auxiliar precisamente no fortalecimento do setor manufatureiro indiano, para evitar a manutenção do que ela chama de "círculo vicioso", no qual o setor de serviços, por ser mais desenvolvido, atrai mais trabalhadores qualificados, que por sua vez o alavancam ainda mais. Ela explica que historicamente houve uma mudança, iniciada na presente década, do perfil de investimentos externos na Índia: "quando a economia indiana se abriu em 1991 o primeiro setor que a ser explorado foi o de manufatura, que recebeu mais IDE. O setor de serviços só se abriu em 1997. Entretanto, entre 2000 e 2005 o IDE para o setor de serviços dobrou, gerando esta disparidade".
A China, por sua vez, apresenta números superlativos em termos de investimento externo. Com taxas médias de crescimento em torno de 10% ao ano nos últimos anos, o gigante asiático atingiu a posição de um dos principais polos mundiais de atração de investimentos, passando a exercer influência em todos os mercados globais. "Juntamente com o rápido do comércio exterior e a maior absorção de tecnologia e recursos de grandes empresas estrangeiras, a China se destacou por aprofundar o processo de internacionalização das suas principais corporações", frisa Luciana Acioly.
"Os fluxos de investimento direto chinês no mundo multiplicaram-se por mais 60 vezes entre 1990 e 2008, segundo os dados da Unctad. Quando o país iniciou seu processo de abertura econômica em 1979, esses investimentos saíram de um valor próximo a zero para atingir US$ 830 milhões em 1990 e, posteriormente, US$ 52,1 bilhões em 2008", destaca a pesquisadora do Ipea.
O investimento direto chinês no mundo concentrou-se majoritariamente no setor de serviços, seguido pelo setor primário. Dados de estoque de IDE de 2008 mostraram que os serviços relacionados a negócios responderam por 30% do total, o setor financeiro por 20%, enquanto que as atividades do setor primário contabilizaram 13%, sendo que quase a totalidade desses recursos foi aplicada nas atividades mineradoras (ver gráfico 4).
As características do processo de internacionalização da China "responderam à estratégia e ao conjunto de políticas determinadas pelo governo a fim de controlar o timing e dispersão setorial e espacial de saída dos investimentos", explica Luciana. (ver tabela 1) Até o final da década de 1990 os investimentos chineses no exterior eram fortemente restringidos pela State Administration of Forein Exchange (SAFE), e, na década seguinte, essas restrições foram sendo gradualmente reduzidas.
Atualmente a China procura balancear esta forte participação no comércio internacional com maior peso político em órgãos multilaterais. Neste sentido, Liu Youfa, vice-presidente do Instituto Chinês de Estudos Internacionais, destacou que um dos objetivos do país, juntamente com os demais que conformam o BRIC, é "transformar poder econômico em influência geopolítica". Youfa ressaltou a importância do bloco em números: segundo ele, os países do BRIC respondem por 42% da população global, 40% da superfície terrestre, 75% das reservas internacionais em dólar ou títulos lastreados nesta moeda, além de 14% do PIB mundial, sendo responsáveis por metade do crescimento anual deste último. Ele cita que os países do bloco têm desafios comuns a enfrentar, e dá especial destaque a "uma reforma do sistema político e econômico mundial e a formação de uma nova ordem global".
NOVO PADRÃO MONETÁRIO Parte dos esforços para a reforma do sistema econômico passa pela alteração do padrão monetário internacional. Com a confiança no dólar arranhada após a crise financeira internacional, os países do BRIC esboçam sinais de que é preciso buscar alternativas para a dependência do dólar, para salvaguardar suas reservas em eventual desvalorização e para uso nas transações monetárias do comércio internacional entre Brasil, Rússia, Índia e China.
Desde antes da primeira cúpula dos países do BRIC, ocorrida em junho do ano passado em Ecaterimburgo (Rússia), se aventa possibilidades tais como compor as reservas internacionais com os bônus emitidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), e como firmar acordos de trocas cambiais (swap) para a cesta de moedas do BRIC.
A discussão de mudança do padrão dólar nas reservas internacionais e nas transações comerciais foi debatida durante o evento do Ipea, paralelo à reunião de cúpula do BRIC. "Não é descartado que isso possa ocorrer", assinalou na ocasião Márcio Pochmann, presidente do Ipea. Ele lembrou que a mudança do padrão libra-ouro para o padrão dólar levou 30 anos, mas afirmou que "não é desprezível a possibilidade de comércio não feito mais com o padrão do dólar". Pochmann salientou que o Brasil já vem testando com outros países a possibilidade de intercambiar com moedas nacionais, e citou as transações entre Brasil e Argentina feitas desde 2009 em real e peso.
A questão do padrão monetário é especialmente delicada para a China que possui mais de US$ 1 trilhão em reservas internacionais. "O país com a moeda de referência tem que ter mais espírito de responsabilidade", disse durante o evento o vice-presidente da Academia Chinesa de Ciências Sociais, Li Yang, em referência velada aos Estados Unidos.
Além da responsabilidade monetária, o chinês aponta para a hegemonia na governança global. "Após a crise financeira reconhece-se que o sistema monetário internacional não só está impotente para lidar com a crise mas, o que é pior, serve para aguçar e espalhar a crise financeira", criticou. Yang reconhece, no entanto, que a reforma monetária internacional é uma tarefa de longo prazo, e que o papel dos países do BRIC é limitado, pois a mudança depende de toda a comunidade internacional.
Yang disse diplomaticamente que a China "observa com interesse" a diversificação das reservas internacionais e as trocas comerciais com as próprias divisas dos países.
Vladimir Davydov, diretor do Instituto da América Latina da Academia de Ciências Russa, se revelou mais cético com as possibilidades de mudança do padrão monetário. Ele identifica em diferentes zonas geográficas, como na Europa com o Euro, alguma "busca de solução", mas pergunta se "há vontade política e possibilidade técnica para realizar as mudanças?". Sua resposta é que "não", mesmo estando o atual sistema monetário sob dúvidas.
Para André Vieira, técnico em planejamento da Diretoria de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais (Dicod), "não existe no curto prazo a menor perspectiva de extinção do dólar norte-americano como padrão de troca
A estrutura internacional está montada sob a hegemonia norte-americana", ponderou. O economista aponta que o principal interessado na troca do padrão monetário é a China, por razões de hegemonia econômica e política. "A moeda é uma construção social. A sociedade se vê no seu equivalente geral, mas limitada nacionalmente. A única moeda que extrapolou isso foi o dólar norte-americano", explica. Segundo Vieira, o esforço de um país que quer transformar-se em hegemônico passa por transformar a sua moeda, um papel simbólico de troca, em uma moeda "universalmente conhecida. É uma coisa de longo prazo que interessa ao país que hoje se lança como desafiante do futuro", conclui.
Extraído de cartacapital.com.br