sábado, 17 de abril de 2010

O jogo de blefes e a política nuclear pelo mundo

Protagonista de umas das maiores tensões mundiais, talvez a maior, a questão nuclear causa em todo mundo apreensão muito em virtude do viés para o qual a questão é sempre noticiada pela mídia que é para uso bélico;
o que também só vem se acentuando por conta da configuração dessa política pelo mundo, pautada em acordos dúbios ou então que podem ser desfeitos em um simples estalar de dedos.

Enquanto os EUA correm contra o tempo para manter a produção e o arsenal nuclear de outros países sobre seu controle, uma forma de assegurar sua hegemonia que já começa a ruir e não é de hoje, os mesmos acabam esquecendo de países que realmente podem oferecer perigo devido a sua instabilidade mas que são ignorados pelos EUA por questões estratégicas - como o Paquistão que é estratégico para o EUA na guerra do Afeganistão mas que possui um governo instável que sofre constantes ataques do Taleban e que, contudo, produz arsenal nuclear e sequer é incomodado pelos EUA - configurando assim um cenário político temerário contra uma questão que deveria ser tratada de uma outra maneira que não a que envolva apenas interesses pessoais.


A cúpula de Segurança Nuclear em Washington nos dias 12 e 13 de março deve ser entendida, antes de mais nada, como uma tentativa dos EUA e aliados, de manter o status quo geopolítico ao menor custo militar e econômico, por meio de um concerto de potências nucleares. Menos ruim, é provável, que o unilateralismo belicoso do primeiro governo Bush júnior, mas continua a ser um esforço no sentido de salvar uma hegemonia em risco.

A preparação incluiu um acordo entre Washington e Moscou sobre redução de arsenais nucleares e uma revisão da estratégia nuclear dos Estados Unidos, segundo a qual o país, mesmo atacado com “armas de destruição em massa”, promete não usar armas nucleares contra nações que não as possuam se – a ressalva é importante – estes cumprirem o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP).

Nenhuma das duas decisões é exatamente o que parece. Ao contrário do acordo nuclear anterior, entre Bush pai e Mikhail Gorbachev, o novo nem sequer exige que as ogivas postas fora de serviço sejam de fato inutilizadas: podem ser deixadas de reserva e reativadas em questão de dias, se a conjuntura mudar.

Da mesma forma, se a conjuntura mudar, a “nova postura nuclear” de Obama pode ser alterada de uma penada, como se fez em relação a Bush júnior. Além de ser um retrocesso em relação a posições anteriores. Antes de 2002, quando o Júnior anunciou a doutrina que fez do “eixo do mal” um alvo potencial de bombas atômicas – o que levou a Coreia do Norte a expulsar os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), retirar-se no ano seguinte do TNP e detonar sua bomba atômica em 2006 –, a posição dos EUA era que armas nucleares seriam usadas apenas contra potências como China e Rússia.

Não que tais declarações tenham algum valor além de propaganda: em 1968, a União Soviética de Leonid Brejnev comprometeu-se a jamais ser a primeira a usar armas nucleares em um eventual confronto. A Otan não acreditou nem o imitou e, em 1993, quando Boris Yeltsin abandonou esse compromisso, ninguém se preocupou. Promessa por promessa, o Irã também garante jamais produzir, estocar ou usar armas nucleares, não por uma mera ordem executiva, mas por uma fatwa de setembro de 2004 do líder supremo Ali Khamenei, um parecer fundado na lei islâmica que é quase tão difícil de revogar quanto um pronunciamento dogmático do papa.

A tese iraniana de “energia nuclear para todos, armas nucleares para ninguém”, é defensável. Em troca de promessas que podem ser abandonadas em horas, espera-se que outros países joguem fora muitos anos de pesquisa e investimento necessários para se desenvolver a capacidade de produzir combustível nuclear por conta própria – a única violação de que o Irã pôde, até agora, ser acusado com provas. E que acatem as decisões de uma cúpula da qual a sexta potência nuclear do mundo, Israel, recusa-se a participar por temor de que países como Turquia e Egito cobrem sua adesão ao Tratado de Não Proliferação (ao qual o Irã aderiu), rompendo o pacto de silêncio pelo qual seu arsenal atômico é deixado de lado pela mídia e pela ONU, como se fosse parte da ordem natural das coisas: “A política de ambiguidade (nuclear) é o fundamento de toda a segurança de Israel, sempre o foi e continuará a ser. Obama não exigiu que ela fosse alterada”, disse o vice-chanceler israelense Danny Ayalon em entrevista à emissora de rádio do seu Exército.

De resto, o mundo ideal de Obama talvez fosse “livre de armas nucleares”, segundo as declarações que lhe renderam o Nobel da Paz de 2009, livre e até de caças que contribuam para o efeito estufa, a julgar pela apresentação recente de um F-18 parcialmente movido a biocombustível, o “Green- Hornet”. Mas de nenhuma forma um mundo livre de golpes militares devastadores. O programa de Ataque Global Imediato Convencional (Conventional Prompt Global Strike – CPGS), citado pelo Departamento de Estado em 9 de abril, pretende contornar as limitações ao arsenal nuclear. Desenvolveria armas convencionais avançadas e de longo alcance que Moscou não seria capaz de emular, tais como armas hipersônicas que proporcionariam a velocidade e alcance de um míssil balístico internacional a uma ogiva convencional.

Supostamente, teriam o mesmo poder de dissuasão das armas nucleares, trocando poder de destruição indiscriminada por mais precisão, com menos risco de envenenamento radioativo do planeta. Em troca, podem aumentar a tentação, para os estadunidenses, de ameaçar ou atacar com leviandade, com o risco de atingir alvos errados e provocar uma retaliação nuclear. A quem, exatamente, interessa tornar a guerra mais viável, politicamente correta ou ecologicamente sustentável?

Dito isso, a cúpula que reuniu 47 nações não deixa de ser um fato geopolítico a se levar em conta, sejam ou não verdadeiros os discursos com os quais se apresenta. Ao contrário de seu predecessor, Obama parece levar a sério o multilateralismo das grandes potências – mas só destas –, a ponto de oferecer concessões palpáveis. Para melhorar as relações com a Rússia, desistiu dos antimísseis na Polônia e parece ter admitido implicitamente uma esfera de influência russa, ao aceitar a vitória do candidato pró-russo na Ucrânia e reconhecer rapidamente o (popular) golpe de mesma orientação no Quirguistão. Até que ponto outros poderes têm interesse em colaborar?

A Rússia tem interesse aparente em congelar as relações de força, pois seu prestígio internacional depende em grande parte do arsenal herdado da União Soviética. Sob outros aspectos, é hoje uma média potência tentando recuperar algo do peso que perdeu em termos econômicos e ainda mais em capacidade de inovação independente desde o colapso do socialismo. O Reino Unido é militarmente um apêndice do Pentágono desde os anos 50, a França abriu mão da sua relativa autonomia estratégica com o fim do gaullismo e a União Europeia como um todo, enfraquecida por divisões internas, não tem perspectiva de se tornar um poder militar global em futuro previsível.

Restam Índia e Paquistão que, embora donas de arsenais de alcance limitado, se impuseram como potências nucleares contra a vontade das forças ocidentais. E a China, que não é pouca coisa. Terceira potência nuclear, tem mísseis de alcance mundial, um vasto exército convencional, capacidade tecnológica ascendente (produz hoje quatro vezes mais artigos científicos que a Rússia) e uma economia em crescimento explosivo cujas necessidades de insumos e de mercados obrigam o governo de Pequim, queira ou não, a ampliar sua dimensão geopolítica, inclusive do ponto de vista militar.

A ambiguidade chinesa é a pedra no sapato do presidente dos EUA, contra a qual pouco pode fazer, além de tentar interpretá-la a seu favor. Tem para isso o apoio de grande parte da mídia estadunidense e ainda mais da brasileira – mais que nunca, disposta a reduzir o noticiário internacional a peça de propaganda eleitoral – mas a realidade não é bem essa.

Na cúpula, Obama disse que a China já enviara um representante aos EUA para negociar sanções econômicas ao Irã. Os chineses preferem dizer, porém, que a solução será o diálogo. Em outras ocasiões-, disseram só admitir sanções que não prejudicassem os iranianos civis, ou seja, não-econômicas. O chanceler brasileiro, Celso Amorim, ironizou a propaganda dos EUA, repercutida e exagerada pelos setores da mídia brasileiras aos quais interessa fazer parecer que “o Brasil ficou isolado”: “Vou procurar saber o que a China disse aos EUA no Brasil, na reunião dos BRIC” (dias 15 e 16, em Brasília).

Ao Brasil, como à Turquia, interessa uma solução pacífica para o Irã. O presidente Lula e o primeiro-ministro Recep Erdogan pressionaram e obtiveram uma reunião de última hora com Obama para apresentar uma proposta comum – a Turquia, neutra, teria o material nuclear do Irã sob sua guarda e responsabilidade enquanto o urânio fosse enriquecido. Obama a ouviu e não se opôs à iniciativa, mas não a apoiou e continuará a campanha por sanções econômicas no Conselho de Segurança e certamente irritou-se com o rompimento público da falsa unanimidade contra Teerã.

Tanto Brasília quanto Ancara querem mais do que marcar posição. Para se opor às sanções, têm interesses comerciais importantes no Irã e também estratégicos, ainda que não da mesma natureza.

A Turquia, vizinha do Irã e de todas as embrulhadas do Oriente Médio, só tem a perder com a possibilidade de guerra ou desestabilização da região – inclusive territorialmente, visto que isso cria oportunidades para seus rebeldes curdos. E o país,- depois de décadas de tentativas frustradas de associar-se à União Europeia e obter vantagens de sua tradicional fidelidade ao Ocidente, passou a eleger governos islâmicos, menos simpáticos a Tel-Aviv e mais próximos dos árabes e do Irã. Em 6 de abril, o chanceler israelense Avigdor Lieberman acusou Erdogan de “estar se transformando em um Kadafi ou Hugo Chávez”. No dia seguinte, o primeiro-ministro turco respondeu em Paris que “Israel é a maior ameaça à paz no Oriente Médio”.

Ao Brasil, mesmo sem vínculos tão imediatos quanto o Irã, não convém abrir precedentes para sanções das potências nucleares contra países com desenvolvimento autônomo de energia nuclear para fins pacíficos, que é também o seu caso. Já em 2004, o Brasil, para proteger de espionagem industrial sua tecnologia, vetou a inspeção das centrifugadoras de urânio em Resende (RJ), e permitiu à AIEA apenas monitorar válvulas e tubos para medir a produção, o que foi aceito. E em março deste ano, tanto o governo quanto os militares rejeitaram como “invasivo” o adendo promovido pelos Estados Unidos ao TNP, que a AIEA apresentou em março e pretende impor a todos os signatários, pelo qual teriam de se submeter a frequentes e detalhadas inspeções de surpresa para ter o “direito” de exportar urânio.

Nesse mundo de relações de poder em dissolução e movimento, não há garantia de que Obama ou os EUA de fato consigam seus objetivos e o Brasil tem optado por não colocar todos os ovos na mesma cesta. Prefere caças franceses, faz um acordo militar com os EUA para viabilizar troca de equipamentos e tecnologia (e abrir espaço para a Embraer no mercado norte-americano), mas também abriga em Brasília a reunião com as outras três potências, nucleares, que com ele formam o BRIC e têm interesses econômicos e geopolíticos bem distintos do bloco ocidental, às vezes opostos.

De Washington, Lula, Hu Jintao, o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh e (com escala em Buenos Aires) o presidente russo Dmitri Medvedev vão a Brasília conferenciar com objetivos principalmente econômicos, mas isso inclui o uso de suas próprias moedas no comércio mútuo, em substituição ao dólar – um fator a mais de corrosão de uma hegemonia já ameaçada – e intercâmbio militar, incluindo a possível instalação de fábricas russas de carros blindados Tigre e caminhões militares Kamaz no Brasil, a serem exportados para outros países latino-americanos.

As pressões por maior controle de material e processos nucleares devem, porém, continuar. Obama parece levar muito a sério o risco de organizações terroristas conseguirem uma arma nuclear.- Segundo seus especialistas, a Al-Qaeda- tenta adquirir materiais nucleares há 15 anos, embora aparentemente não tenha capacidade técnica de construir uma bomba atômica. Sabe-se, de ao menos, 18 casos de roubo ou desaparecimento de materiais nucleares. Em novembro de 2007, quatro homens armados chegaram a invadir um depósito sul-africano com urânio enriquecido, suficiente para doze bombas antes de serem repelidos.

Nesse sentido, o maior risco não é o Irã, cujo regime é estável, mas o Paquistão. Notoriamente, tem um governo precário e forças armadas cheias de fundamentalistas e sofre contínuos atentados e ataques guerrilheiros do Taleban. Mas não só enriquece urânio e tem armas nucleares, como está construindo dois reatores para produzir plutônio e bloqueando a proposta de Obama de um tratado para deter a produção de material militar no mundo. E os EUA preferem deixar o problema de lado, por precisarem do Paquistão para sua estratégia no Afeganistão – e nem sequer consideraram o problema na agenda da Cúpula. •





Extraído de cartacapital.com.br

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